Crise na educação e teoria da história: alguns apontamentos – Luisa Rauter

Leia abaixo o excelente texto escrito pela Profª Luisa Rauter sobre as possibilidades do uso da teoria da história na sala de aula em um momento de crise na educação. Luisa, junto com Valdei Araujo e Marcelo Rangel, oferecerá a Oficina de Formação de Professores: Teoria e escrita da história na sala de aula da educação básica dentro da programação do 6SNHH em agosto. 

*** 

A alegada crise na educação escolar é um fenômeno global nos dias de hoje. A indisciplina e desinteresse dos alunos, a falta de infra-estrutura dos estabelecimentos de ensino, o baixo salário dos professores e a falta de perspectivas da carreira são um tema recorrente no Brasil e no mundo. Como a teoria da história pode nos ajudar a compreender e desenvolver estratégias para lidar com esse fenômeno geral de grande importância para nosso destino?  Os aspectos sócio-econômicos e políticos em estrito senso desta crise, embora fundamentais, não esgotam a questão. É preciso entender esta crise também como uma das conseqüências de aspectos centrais da modernidade.

Como mostrou a filósofa alemã Hannah Arendt, a crise da educação guarda estreita relação com a forma como o mundo moderno passou a se relacionar com o passado e tradição legada, elementos fundamentais do processo de educação e formação das pessoas.  Não apenas a História, pela natureza de seu objeto, mas todas as disciplinas escolares são ancoradas na necessidade de transmissão de determinados conhecimentos, valores, formas de agir e pensar legados do passado. Sem negar a possibilidade e a necessidade de se criticar todos esses elementos em todo o momento que se julgar necessário, a educação supõe uma transmissão de algo de um passado que ainda é atual e necessário para a vida presente se concretizar e desenvolver. A própria atividade crítica pressupõe essa transmissão, fundamental para que as novas gerações sejam preparadas e inseridas no mundo.

O problema é que a modernidade tomou como seu lema o afastamento e a desconsideração de tudo o que vem da tradição como lugar da opressão e dos preconceitos a serem superados. A modernidade evocou a liberdade e os direitos dos indivíduos frente ao passado e à tradição. Sem poder, no entanto, abandonar o processo de formação das novas gerações que chegam ao mundo, manteve as instituições básicas para realizar essa tarefa essencial: a família e a escola, essencialmente. Porém, ao desconsiderar nosso vínculo com a tradição no ato educativo, enfraqueceu a legitimidade e a autoridade da escola. Num mundo que não valoriza o passado e a transmissão da sabedoria como seus elementos estruturantes, a escola vive um dilema, que Hannah Arendt resume da seguinte forma:

“O problema da educação no mundo moderno está no fato de que, por sua natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição” (Arendt, Hannah. “A Crise na Educação”. In Entre o Passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 245)

Sem poder livrar-se de sua natureza formativa humanista, a escola se mantém como uma espécie de corpo estranho num mundo que valoriza cada vez menos seu papel fundamental, embora também não tenha podido encontrar outras formas de realizar o ato educativo. Na contemporaneidade, marcada pelo consumo desenfreado de bens, pelo bombardeamento de informações pelas mídias, por um tempo acelerado de atividades e eventos mecânicos e sem significado que não chegam a se transformar em sabedoria de vida para as novas gerações, a escola parece ter perdido seu lugar. Num tempo em que a formação intelectual humanística das pessoas cada vez parece menos importante frente à sua capacidade de executar performances técnicas imediatistas próprias à atividade capitalista atual, como justificar a existência da escola, lugar que teve historicamente o papel de realizar a transmissão crítica dos valores e experiências legados pelo passado? Em relação à disciplina histórica, a questão se torna crucial: como justificar o conhecimento de momentos históricos passados, de sociedades tão diferentes das nossas, de experiências de outras épocas e culturas, num mundo marcado pelo desinteresse pelo que não tem utilidade e valor de consumo imediato?

Entretanto, a escola está aí, e, até o momento, o mundo contemporâneo não encontrou outra forma de inserir as novas gerações na vida adulta e em comunidade. Assiste-se hoje em dia, ao menos no Brasil, a um movimento popular pela valorização da escola e do professor, o que resultou em iniciativas, como um piso salarial nacional, que, infelizmente, não se tornou uma realidade até o momento. A escola, entretanto, não deve nunca esquecer sua natureza e se deixar transformar em um local de apreensão de competências técnicas, como parece ser uma tendência, mas precisa manter sua vocação humana formativa frente a um mundo acelerado, consumista e tecnicista.  Como fazer isso, é a grande questão.

Um caminho inicial pode ser esboçado pela discussão no interior das escolas e das salas de aula de aspectos da experiência do tempo contemporânea: a aceleração do tempo, o “presentismo”, o consumismo, o tecnicismo. É preciso pensar atividades a serem realizadas pelos docentes da educação básica com seus alunos para tratar destes aspectos do mundo atual, o que pode ser uma contribuição para o movimento de repensar os rumos da escola, da educação contemporânea, em especial do ensino de história na educação básica.

Luisa Rauter

(Ilustração de Maurice Sendak (1928-2012) para o livro Where the wild things live)

Deixe um comentário